Adolescente agitado, Lucas**
fica tímido ao mostrar suas mãos. Em uma delas, há uma marca de infância. Mas
não é uma marca que nasceu com ele. Ela surgiu quando uma pessoa da família
utilizou um garfo quente para repreendê-lo e o queimou. “Até hoje eu tenho [a
marca]. Nas costas também, mas lá acho que não tenho mais as marcas”, contou
ele à Agência Brasil. Lucas tem 13 anos. É filho adotivo e começou a apanhar
“de cinta e de fio” da mãe e do cunhado depois que o pai morreu. Em vários
desses momentos, fugiu para a casa de um amigo para se livrar das agressões.
“Tinha vezes em que eu dormia lá”, falou. “Se eu não lavasse a louça, eles [a
mãe e um cunhado] me batiam. Se eu não acordasse na hora certa, eles me batiam.
Aí eu fugi de casa e esse foi um dos motivos que me levaram ao abrigo”, disse o
adolescente, um entre milhares de exemplos de vítimas de violência doméstica em
todo o país. Dados divulgados pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da
Presidência da República mostraram que 77% das denúncias registradas por meio
do Disque 100, entre janeiro e novembro deste ano, são relativas à violência
contra crianças e adolescentes, o que corresponde a 120.344 casos relatados.
Isso significa que, por mês, ocorreram 10.940 agressões, o que dá uma média de
364 denúncias por dia. Já o Disque Denúncia 181, serviço criado em 2000 pelo
Instituto São Paulo contra a Violência e pelo governo paulista, por meio da
Secretaria de Segurança Pública, registrou 6.603 denúncias de maus-tratos
contra crianças entre janeiro e outubro deste ano em todo o estado, o que dá
uma média diária de 22 denúncias. O número é superior ao do mesmo período do
ano passado, quando foram registradas 6.028 denúncias. Para Ariel de Castro
Alves, presidente da Fundação Criança e vice-presidente da Comissão Especial da
Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é difícil
deduzir, por esses números, se os casos de violência envolvendo crianças e
adolescentes têm crescido ou se as pessoas estão denunciando mais. “É difícil
medir se os casos estão aumentando. Na verdade, a sociedade está muito mais
alerta e mais atuante diante de casos de abusos e de violência contra crianças
e adolescentes. Isso é um fator muito positivo no país nos últimos anos. As
pessoas estão denunciando mais, sendo menos coniventes e omissas”. Nenhum dos
dois serviços de denúncia contabiliza quantos desses casos registrados
referem-se especificamente à violência doméstica. Mas sabe-se que o número é
grande. “Hoje, temos muitas vítimas de violência doméstica. De maus-tratos e de
espancamento”, disse Maria Aparecida Azevedo, que coordena as três casas de
acolhimento da Fundação Criança, uma organização municipal focada na defesa e
na garantia de direitos de crianças e adolescentes, que funciona em São
Bernardo do Campo (SP). “Os casos que chegam para nós são de abuso sexual, de
criança negligenciada e abandonada e de criança queimada e espancada. Essa é a
violência doméstica que está vindo para as casas de acolhimento”, explicou
Maria Aparecida. A violência doméstica pode gerar traumas para as crianças e os
adolescentes, disse Alves. “Muitas vezes, elas [crianças e adolescentes] são
vítimas daquelas pessoas em quem confiam, que entendem ser as pessoas que
cuidam delas. Por isso, há dificuldade para assimilarem uma situação desse
tipo. Esse é o trauma maior. A pessoa que tinha que proteger é a que acaba
violando o direito dessas crianças e adolescentes. Isso gera um trauma, uma
desconfiança permanente com relação aos adultos e dificuldade depois de
convivência com outras pessoas. Isso pode, muitas vezes, gerar também prejuízo
no desenvolvimento educacional”, disse, em entrevista à Agência Brasil. Segundo
Helen Vivili Santana Carmona, diretora técnica adjunta da Fundação Criança,
grande parte dessa violência contra crianças e adolescentes tem como motivação
principal o uso de álcool ou de drogas pelos pais. “Temos um índice grande de
pais com problemas psiquiátricos e que fazem uso abusivo de álcool, que são
geradores de violência”, explicou. Outro fator que contribui para a violência
doméstica contra crianças e adolescentes, disse Helen, é a ineficiência do
Estado. “A violência doméstica é gerada por uma ineficiência do Estado. A falta
dessa rede de atendimento e de serviços, que contemple a necessidade da
família, faz com que essa violência esteja aí, latente, nas famílias mais
vulneráveis”, acrescentou. Pela ineficiência do Estado, esclareceu Helen,
entende-se a falta de uma política habitacional adequada, falta de políticas
envolvendo a empregabilidade e também questões nas áreas de saúde, educação e
até atendimento psicológico precário ou inexistente. “Essas famílias têm essa
dificuldade financeira e isso acaba gerando outros tipos de violência. A
questão financeira é geradora das demais violências. Já tivemos relatos de mães
que tiveram seus filhos acolhidos por conta da questão financeira e que
acabaram agredindo o filho porque ele pediu comida”, contou. “O Estado precisa
olhar para essas questões”. Alves citou outro motivador da violência doméstica.
“O que estimula a violência é também a impunidade”, disse. Para ele, todos os
órgãos que trabalham com a questão envolvendo a defesa dos direitos da criança
e do adolescente, “desde a denúncia no Disque 100 [federal] ou no 181
[estadual], passando pelo Conselho Tutelar, pelas delegacias, pelas promotorias
ou varas especializadas” precisam funcionar e atuar de forma integrada para
combater a impunidade. Também é necessário, destacou, criar, ampliar ou
melhorar as redes de proteção social de atendimento familiar para prevenir os
casos de violência. A ideia seria, na sua opinião, educar os pais para que
possam educar seus filhos de maneira adequada. Lucas vive há cerca de um ano em
um dos abrigos em São Bernardo do Campo. Lá, ele e a família passam por
acompanhamento médico, psicológico, educacional e social. Alguns dos fins de
semana Lucas passa com a família. “Agora eu não apanho mais”, contou. A ideia
do programa desenvolvido na Fundação Criança é que Lucas volte a viver com a
família, agora mais preparada para educá-lo. “A nossa proposta é a de
reintegração familiar. Acolhimento não é lugar de criança. Ela deve estar no
seio familiar, senão biológico, da família extensiva ou até comunitária”,
acrescentou Helen.
Agência Brasil
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